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FABIO LEÃO: entre o crime e o Ringue

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http://canalbrasil.globo.com/programas/cinejornal/videos/3205739.html

  • Filme / Documentário
  • Nome Original:  Entre o Crime e o Ringue
  • Direção:  Paulo Thiago
  • País:  Brasil
  • Ano: 2013
  • Cor:  Colorido
  • Classificação:  Programa permitido para menores acompanhados dos pais

Fábio Leão é um consagrado nome do MMA. O longa-metragem apresenta a trajetória vitoriosa do protagonista, que entrou para o mundo do crime quando jovem, mas superou os obstáculos através do esporte.

By Cristiane Soares e Érica Fernandes (Texto Adaptado)

O nome de Jesus não está apenas estampado no peito do lutador Fábio Leão, mas na transformação de vida que tem demonstrado em cada ringue que entra para lutar. E de lutas ele entende muito bem, é tricampeão Carioca de kickboxing, vicecampeão de Muay Tai, medalha de prata em kickboxing no Pan Americano e no Sul-afriano. Mas de todas essas vitórias, ele afirma que ter conhecido Jesus é a maior de todas. Foi Cristo que o fez vencer as drogas, a criminalidade e o tornou um homem referencial para “gregos e troianos”. Uma história como essa não poderia ficar guardada e nem ficará. Em 2014, ela vai virar filme e livro. Mas, enquanto a vida do lutador Fábio não está nas telas do cinema, você pode conferir aqui no Lagoinha.com, em detalhes, mais um milagre de Jesus.

“Nasci e cresci em uma favela localizada na zona oeste do Rio de Janeiro, atualmente conhecida como comunidade Villa Kennedy. Quando tinha seis meses de idade, o meu pai foi assassinado e, nesta época, minha mãe e minha tia saíam para trabalhar e me deixavam com a minha avó, que cuidava de mim, da minha irmã e de mais três primos. Com o passar do tempo, fui crescendo e levando uma vida normal como a de qualquer criança. Porém, certo dia vi que em uma praça a 50 metros da minha casa, local onde funcionava uma das bocas de fumo do bairro, havia traficantes fazendo “papel de governantes”. Eles supriam necessidades dos moradores da comunidade, inclusive as da minha família, e isso fez com que eu começasse a idolatrá-los. Então, cresci acreditando que o errado era certo. Com a idade de 10 anos, já era fã do Bruce Lee, apaixonei-me pelas artes marciais e comecei a praticar Karatê. No entanto, a fim de conseguir dinheiro para manter-me no esporte, comecei a fazer furtos em supermercados e, aos 13 anos, já pertencia a uma quadrilha que praticava assalto à mão armada. Para minha infelicidade, aos 17, fui baleado numa troca de tiros com a polícia e, a minha avó, pessoa quem eu tanto amava, ao saber da notícia, entrou em profundo desgosto e sofreu um infarto, que a levou a óbito. E aos 19, fui preso. Porém, mesmo vivendo uma vida conturbada, nunca deixei totalmente as artes marciais. Na verdade, ela estava dividida entre o crime e o ringue.

No meu sexto ano de cumprimento de pena, fui transferido para Penitenciária Moniz Sodré, situada no Complexo de Gericinó, em Bangu, no Rio de Janeiro, onde conheci o diretor Gilson Nogueira, primeiro homem usado por Deus para transformar minha vida. Ele viu que, no passado, eu era lutador, e me propôs dar aulas de artes marciais dentro da prisão. Como havia sido condenado a 17 anos, mais do que depressa, fiz as contas e constatei que em vez de eu sair em 2014, sairia em 2010. Sendo assim, aceitei o convite. Mas para que eu tivesse essa oportunidade, o que reduziria a minha pena, o diretor colocou uma condição: fazer uma oração antes e após de cada aula. Naquele momento, respondi que isso era inviável, pois não sabia rezar. Contei a ele que minha família era da umbanda; e que minha vida tinha sido entregue em um terreiro de macumba. O diretor não ligou para o fato e disse que era para eu falar com Deus da forma que sabia, pois Ele me ouviria. Também me disse que DeusPenitenciária Muniz Sodre escolheu as coisas loucas desse mundo para confundir as Sem entender direito o que ele me dizia, questionei: “Doutor, o senhor é crente?”. Ele me respondeu que era cristão, pastor evangélico e que tinha a certeza de que Jesus Cristo é o único que poderia transformar a vida de qualquer ser humano da face da terra. A partir dessa ocasião, aprendi a orar o Pai Nosso e durante três meses fiz essa oração em todos os momentos em que dava as aulas. Porém, certo dia, um traficante chegou até mim e questionou-me até quando eu iria ficar só na oração do Pai Nosso, pois Deus já devia estar enfadado. Ainda com ar de questionamento, ele me pediu que falasse um versículo da Bíblia. Respondi que não sabia e pedi que ele me dissesse um. Ele, então, disse a passagem bíblica João 8.32: “Conhecereis a Verdade e Ela vos libertará”. Sem entender nada, perguntei: “Que verdade é essa?” Ele me disse que a verdade é a Palavra de Deus e me perguntou se eu não tinha uma Bíblia. Eu respondi que não tinha e ele me chamou de maluco por estar em uma prisão, sem ter uma Bíblia. Irritado o indaguei quem era ele pra falar de mim, já que era traficante e matava mais do que a AIDS.

Lembro-me, que naquele instante, ele me disse que havia nascido em lar evangélico, mas que estava afastado dos caminhos do Senhor. Também enfatizou que só Jesus transforma vidas e que Ele usa quem quer, na hora que quer e da maneira que quer. Esse traficante foi o segundo homem usado por Deus, dentro da prisão, para mudar a minha história. Passado uns dias, quando minha mãe, minha esposa e minha filha foram me visitar, solicitei a elas que, no próximo encontro, levassem uma Bíblia. Como minha mãe era macumbeira, ficou assustada com aquele pedido, mas mesmo assim atendeu à minha solicitação. A partir desse dia, comecei a ler a Palavra de Deus e dentro da prisão tive um encontro verdadeiro com nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo. A pior cadeia não é a dos muros e das grades e, sim, a que encontramos, aqui, do lado de fora: a cadeia do preconceito, da dúvida, da rejeição, do descrédito e do NÃO. Quando sai da prisão, já não estava mais só, pois Cristo havia entrado em minha vida. Sabia que se eu me esforçasse, tomasse as atitudes corretas e não desistisse dos meus sonhos, eles seriam e serão realizados. Em Felipenses 4.13, o Senhor nos diz: “Tudo posso naquele que me fortalece”. Sendo assim, em Cristo Jesus, somos mais do que vencedores. É preciso somente ter força, fé e foco. Não desistam, entreguem o seu caminho ao Senhor, confia nele e o mais ele fará.

Tinha certeza que o meu fim seria como a de todos que cresceram no crime comigo. Imaginava que seria assassinado; que morreria com doenças como tuberculose, AIDS; ou que ficaria entrevado numa cadeira de rodas. A minha mudança de vida atribuo ao meu salvador, Jesus Cristo; ao amor e à perseverança da minha mãe, que faleceu quando ainda estava preso; da minha esposa, que está ao meu lado desde os meus 13 anos de idade; e da minha filha Hillary, de 14 anos, que durante 10 anos me visitou no Complexo Penitenciário de Bangu. A minha vida foi totalmente transformada após ter conhecido Jesus. Fui nomeado pelo secretário de Estado de Administração Penitenciária, Coronel Cesar Rubens, como servidor público (cargo de confiança). Atualmente, possuo a mesma carteira dos guardas penitenciários; e não só ministro aulas de artes marciais, mas também prego a Palavra de Deus em oito penitenciárias, onde foram instaladas academias de lutas. Sei que o propósito de Deus em minha vida é fazer com que, por meio das artes marciais, pessoas sejam evangelizadas e levadas ao arrependimento de seus pecados.

Sou grato a Deus pela oportunidade em ser um obreiro-evangelista. Também, juntamente com o pastor Alexandre Esquerdo, lidero um projeto na comunidade da Vila Kennedy, local onde nasci, cresci e resido. Por meio da Palavra de Deus e do esporte, estamos conseguindo ganhar muitas vidas para Jesus. Na comunidade, sempre ministramos o tripé em que o homem deve estar firmado: Deus, família e trabalho, o que já tem fabio-leão-editadaproduzido ótimos resultados: 17 homens que saíram da prisão, hoje, estão vivendo das artes marciais; jovens estão deixando o crime e as drogas; e mulheres de detentos têm seguido o exemplo da minha esposa, que também é obreira da igreja, em não abandonar o marido na prisão. Outro milagre que Deus tem feito na minha vida é um filme de ficção, baseado em fatos reais. Ele está previsto para ser lançado até o final de 2014. O ator global, Thiago Martins, é quem irá compor o meu personagem. Sou um homem liberto das drogas; que foi usado pelo Espírito Santo para ganhar a alma da minha mãe para Jesus; que contou com visitas à penitenciária da própria juíza que me condenou a 17 anos de prisão; e que viveu e ainda viverá muitos milagres. Eu sou e para sempre serei um eterno aprendiz de Deus, que decidiu crer, obedecer e a praticar os mandamentos do Senhor.”

Disponível em: < http://www.lagoinha.com/ibl-vida-crista/fabio-leao-um-lutador-que-venceu-a-vida/ >
Acesso em: 05/11/2014

By Paloma Silbar

As artes marciais deram um novo rumo para a vida conturbada de Fábio Leão. Desde a infância na Vila Kennedy que o lutador se viu dividido entre “o crime e o ringue”. Foi na última ida para a prisão que a grande mudança aconteceu. “Eu recebi a oportunidade da minha vida dentro do sistema penitenciário”, afirma Fábio.

No reino animal, o leão é apelidado de “rei da selva”, por estar no topo da cadeia alimentar. Como simbologia, sua imagem é associada à força, orgulho e liderança. A história de Fábio Leão aponta as influências do sobrenome em seu destino. O menino que “sempre quis ter autoridade e ser líder”, encontrou dois caminhos que atendiam às suas expectativas: o tráfico de drogas e as artes marciais. A vida o fez perambular por estes mundos distintos durante anos, até que Fábio se decidiu por um dos lados: escolheu a luta.

Fábio foi criado na Vila Kennedy, favela da zona oeste carioca. Na juventude começou a se envolver com o crime e chegou às lideranças do tráfico local, ao mesmo tempo que praticava artes marciais. Entre idas e vindas da prisão, o lutador se tornou campeão brasileiro, mas não suportou a perda do campeonato mundial, voltando a se envolver com o crime e com as drogas. Mas uma outra vitória estava por vir: Fábio passou a dar aulas na prisão e conseguiu reduzir sua pena. Foi dentro do sistema penitenciário que se tornou amigo de um antigo desafeto: a juíza Telma Fraga.

A vida que o esperava fora da cadeia era muito diferente da que ele deixou pra trás. Também não era o mesmo homem que aos vinte e poucos anos tinha sido condenado a 17 anos de prisão. Fábio retomou a carreira de lutador e passou a se envolver em projetos sociais. Ao invés de abandonar de vez a prisão, resolveu que ainda tinha uma missão a cumprir ali dentro e continuou dando aulas para os detentos. Também não se esqueceu dos seus anos de infância e passou a dar aula de artes marciais para crianças da Vila Kennedy.

Essa história de superação através do esporte foi contada em inúmeras reportagens de grandes emissoras, como a Globo, SBT e Record. Fábio já perdeu as contas  de quantas entrevistas deu para revistas, TVs e sites. E o sucesso não para por aí. A vida do lutador da Vila Kennedy vai se tornar um filme com a direção de Paulo Thiago. O título mais cogitado para o longa-metragem é “Fábio Leão: entre o crime e o ringue”. Fábio revelou que seu papel será feito por um ator global, mas deixou seu nome em suspense.

A entrevista aconteceu na própria Vila Kennedy, numa academia em que Fábio dá aula. Durante nossa conversa, a “celebridade” local era cumprimentada por vários alunos. Fábio falou de crime, artes marciais, cadeia, drogas, família, UPP e religião.

Como foi a sua infância na Vila Kennedy?

Eu fui nascido e criado na Vila Kennedy, que sempre foi um bairro liderado pelo tráfico de drogas. O maior poder aqui nunca foi o poder público. Na época, em 82 ou 83, o traficante ajudava os moradores, comprava remédios, alimentos, fazia churrasco, festas das crianças. Na pracinha que é a 50 metros da minha casa, onde eu jogava bola de gude e soltava pipa, rolava o tráfico. Eu cresci vendo os traficantes fazendo papel de governantes. Eu acabei acreditando que o errado era o certo, porque eu via os caras com cordão de ouro, cheio de mulher bonita, carros do ano e fazendo papel de Robin Hood, roubando dos ricos e dando pros pobres. Quando eu tinha 10 anos, eu lembro que morreu um dos líderes do tráfico. No enterro tinha três ônibus lotados e um montão de mulheres brigando por um cara que já tava morto. Eu, com 10 anos, pensei: “Eu vou ser mais sinistro que esse cara. No meu enterro vai ter cinco ônibus e mais mulher brigando por causa de mim, porque eu vou ajudar mais gente, vou roubar mais, vou matar mais e eu vou ser mais respeitado do que ele.” Ali eu comecei a ter os traficantes como ídolos.

E pelas artes marciais, quando você começou a se interessar?

Quando eu era criança, na televisão, passava muitos filmes do Bruce Lee. Como eu sempre fui hiperativo, eu via um golpe e queria dar nos meus colegas. Aí eu comecei a fazer karatê com um professor que dava aula de graça numa associação de moradores. Eu comecei a ter dois ídolos: o líder do tráfico e meu professor. De dia eu ficava na rua fazendo avião e comprando quentinha pros caras da boca. Só que de noite eu tava dentro da academia, aprendendo artes marciais. Então a minha mente, com 12 anos, ficou confusa. Do lutador eu gostava das medalhas, da disciplina do esporte, da reverência do aluno com o mestre. Aquilo me chamou tanta atenção quanto um traficante. Eu sempre quis ter autoridade e ser um líder e ali eu tinha com dois segmentos. Eu treinei dois anos de caratê e o professor parou de dar aula pra trabalhar num emprego de segurança à noite. Depois disso, eu fiquei só no crime.

Com 12 anos você ficava o dia inteiro na rua. E como ficava a escola?

Eu fiz até a oitava série, mas eu só ia pra escola pra agradar minha mãe. Já não entendia mais nada, só vivia na rua. Eu ia com revólver pra escola e enquadrava os chamados nerds: “Faz minha prova aí, se não o bagulho vai ficar doido pra você”.

E hoje, você não sente falta de ter tido essa educação escolar?

Por incrível que pareça, dentro da prisão eu me tornei mais culto. Às vezes, eu conversando aqui, falo palavras que eu aprendi nos livros da biblioteca da prisão.

Você começou a fazer assaltos bem jovem. Como você se sentiu no seu primeiro assalto?

Eu me senti poderoso, acima de tudo, o dono do mundo. Quando eu botei o revólver na cara da atendente no balcão, ela abriu a porta pra mim e falou “pode levar tudo que você quiser”. No cofre tinha dinheiro que eu nunca vi na vida. Eu, um garoto de 13 anos, tinha dinheiro pra comprar carro, moto, mas não podia, porque fazia isso escondido da minha mãe e da minha vó. O dinheiro que eu peguei eu gastei em três meses em farra, bebida, maconha e cocaína.

Quando você foi preso pela primeira vez, qual foi a sua impressão do sistema penitenciário brasileiro?

Com 19 anos de idade eu cheguei dentro de uma cela na Polinter, na Praça Mauá, e encontrei condições sub-humanas. Dentro de uma cadeia que dava pra 20 pessoas morarem, tinham 110 homens. Muitos com tuberculose, doenças de pele e vírus da AIDS. Eu botei na minha cabeça que as piores coisas do mundo são: fome, guerra e cadeia, porque eu já vivi isso tudo. Eu já passei dificuldades de não ter alimentos na minha casa, eu já me envolvi numa guerra porque tinha que roubar pra me sustentar. E a guerra leva o homem pra morte ou pra cadeia. Eu parei na cadeia pela permissão de Deus. E dentro da cadeia eu falei que nunca mais voltaria pro crime, porque eu nunca mais queria cair num lugar daquele.

Mas você acabou voltando pro crime. Você não ficou com medo de ser preso de novo?

Não pensa que eu saía e voltava direto pro crime não. Eu cheguei a trabalhar em algumas multinacionais, só que eu nunca ficava mais de três meses, que era o prazo da experiência. Eu chegava lá era o mesmo papo “Fábio, você é um excelente funcionário, mas a nossa empresa não admite pessoas que passaram pelo sistema prisional”. Aquilo ali era como se fosse um nocaute pra mim. Eu saía chorando e com a certeza de que a única saída pra minha vida era ser bandido. Ou eu vou ficar velhinho na cadeia, ou eu vou morrer trocando tiro. Eu falava: “Poxa, se eu tô te pedindo um emprego é porque eu não quero voltar pro crime. No crime eu ganho cinco mil por semana, eu tô me sujeitando aqui pra ganhar um salário mínimo. Se alguém vir roubar, eu tenho coragem de te defender. Se sumir alguma coisa aqui, o maior suspeito vai ser eu. Vou ser o leão de chácara, não vou deixar sumir nada”.

Em entrevista pra Revista Trip você disse que se sentia diferente dos “outros caras”. Por quê?

Mesmo morando na Vila Kennedy eu usava meu dinheiro pra surfar, voar de asa delta e viajar pela Região dos Lagos. Meu sonho é ir pra Fernando de Noronha. Eu gosto de mergulhar, de lutar, de esporte radical. Eu nunca gostei de falar “eu sou bandido”. Mas a ostentação de querer ter um tênis da nike, umaqualand no braço, um cordão de 100 gramas, isso aí que me levou pro crime: falta de informação, ostentação de poder e as dificuldades da vida de um favelado. E de você vê a sua mãe abrir um armário e chorar porque não tem uma comida pra fazer e ali, a 50 metros, ter uns caras com mochilas cheias de dinheiro.

Como você chegou às lideranças do tráfico de drogas na Vila Kennedy?

Eu fazia clonagem de carro. Por exemplo, eu via uma Hilux preta, eu mandava roubar uma igual. Aí a gente modificava o chassi do carro roubado pro carro real, um clone. Só que a gente pegava esses carros e mandava pro Paraguai e trocava por armas e drogas. Foi quando eu comecei a liderar. Eu comecei a abastecer as bocas de fumo da Vila Kennedy, Mangueira, Jacaré, Manguinhos, da facção criminosa que predomina aqui, que eu não vou falar o nome porque já tem muita propaganda. Eu trocava um carro por 30, 40 quilos de cocaína.

Você fazia o papel de abastecedor do tráfico…

O nome no crime é matuto, que é o cara que fornece drogas pras bocas de fumo. Ali eu cheguei a ter casa de praia, carro importado, tudo que você pode imaginar. Só que eu queria comprar um carro, mas não podia ir na agência, porque tava com mandato de prisão. Pra comprar um cordão de ouro eu tinha que mandar o vendedor ir até a favela. Eu tinha uma casa aqui na Vila Kennedy com três quartos, suíte, piscina e sauna e era o único lugar que eu não podia ir. Tinha também uma casa em Iguaba, que na época eu comprei por 70 mil. Eu ganhava de cinco a dez mil por semana, e já não roubava mais.

Então você estava com uma situação financeira muito acima dos outros moradores da Vila Kennedy…

Mas aí eu comecei a fazer aquele papel que aqueles traficantes fizeram comigo quando eu era novo. Eu comecei a fazer compras pra moradores necessitados, a dar cestas básicas, a comprar remédios. E eu ainda tinha um sonho: quando eu morrer, pelo que eu faço, vai uns cinco ônibus no meu enterro. Eu ainda continuei com aquilo na cabeça.

Por que alguém sonha com o momento da morte?

É porque eu convivia com a morte. Eu sabia que o meu futuro seria a cadeia ou a morte, porque é o normal na vida de um bandido. Aquilo já fazia parte da minha vida, era o natural, era igual à lei da física: tudo que sobe, desce.

O que aconteceu com o dinheiro e imóveis que você foi adquirindo?

Eu tive que vender tudo. Uma vez indo daqui pra casa de praia, um X9 me cagoetou, eu fui pego pela polícia e perdi pra eles de uma vez só mais de 100 mil. A minha casa de praia de Iguaba e a minha casa de três quartos na Malvina eu tive que vender pra pagar os policiais. Quando a minha cadeia deu 17 anos, eu tive que vender o restinho pra pagar os advogados. Do crime, a única coisa que tenho até hoje, é uma bala alojada nas costas. Hoje eu moro na casa da minha falecida mãe, onde eu fui nascido e criado.

Qual foi o papel da religião na sua mudança de vida e saída do crime?

Hoje eu sou cristão. Não sou religioso, eu detesto religiosos. A palavra de Deus é o que eu sigo. A palavra de Deus fala “tudo me é lícito mas nem tudo me convém”. Eu posso ser qualquer coisa, estar em qualquer lugar, sem me prejudicar nem prejudicar o outro. A palavra de Deus diz “Amar a Deus sobre todas as coisas, amar teu próximo como a ti mesmo”. Então, o que eu não quero pra mim eu não posso desejar pra você. Hoje eu não tenho coragem mais de assaltar ninguém, de clonar o carro dos outros, de vender drogas. Porque quantas famílias não foram destruídas com a droga que eu vendi? Hoje eu me arrependo.

Você também foi usuário de droga. Como foi o processo até a dependência química ?

Depois que eu fui campeão brasileiro, eu fui convocado pra ir pro Mundial na Itália. Eu tinha que ter cinco mil dólares pra viajar e, se eu fosse campeão, eu ia ganhar 50 mil. Mas eu não consegui patrocínio. O cara que foi no meu lugar tinha patrocínio, foi campeão, ganhou a bolsa da luta e a carreira dele deslanchou. Eu pensei “era isso é o que ia acontecer comigo. Lutar não dá, realmente eu sou bandido”. Voltei a clonar carro, fazer tudo de novo. Na quarta vez eu já fui preso dependente químico, porque me deu uma depressão por eu não ter ganhado o título mundial e, quando as drogas chegavam na minha mão, eu experimentava. Era cocaína pura, eu tirava uma pedra, amassava e cheirava. A maconha era da melhor qualidade porque eu fazia contato direto com o Paraguai. Eu fiquei dependente muito rápido. Cheguei a ter dois princípios de overdose. Acordei no hospital duas vezes todo entubado. Só que eu nunca gostei de droga porque eu gostava do esporte e de ter meu corpo forte. 

Como nasceu a sua amizade com a juíza Telma Fraga, a mesma que te condenou a 17 anos de prisão?

Quando eu cheguei na prisão, o diretor Gilson Nogueira viu na minha ficha que eu tinha sido campeão brasileiro 15 anos antes. Esse homem foi usado por Deus pra salvar minha vida. Ele falou: “você vai dar aula aqui dentro, vai trabalhar três dias e vai cair um dia da pena. Em vez de você ir embora em 2014, em 2009 você ganha sua liberdade”. Eu comecei a dar aula, parei de usar drogas e de me envolver com o crime através do esporte. Passaram dois meses ele falou pra mim que a juíza Telma Fraga queria me visitar. Eu falei: “meu irmão, eu quero ver o capeta mais não quero ver essa mulher. Foi ela que me condenou a 17 anos de prisão”. Ela chegou dentro da penitenciária e falou “Fábio eu não condenei você e não condenei ninguém. Eu sentenciei o ato cometido. Daqui pra frente eu quero te ajudar”. Na outra semana ela levou o Rogério Minotouro e o Rodrigo Minotauro, dois lutadores famosos, lá na prisão. Os caras montaram uma academia pra mim e mandaram os equipamentos. Eu fiquei treinando quatro anos lá dentro e ganhei a minha liberdade. Quando eu saí ela me chamou pra trabalhar com ela. Eu falei “Como, eu não tenho nem a oitava série completa. A senhora deve ter estudado matérias interplanetárias”. Ela disse: “Você vai ser palestrante motivacional do meu lado, vai contar a sua superação dentro da prisão”. Hoje eu sou palestrante, ela é minha madrinha e minha melhor amiga. Eu não falo que ela é como uma mãe pra mim porque ela é nova, tem 45 anos e é bonita. Eu tenho ela como uma irmã.

Hoje você dá aulas em presídios, é palestrante, é lutador. Como está a sua vida atualmente?

Eu vivo da luta. Sou tricampeão carioca, prata no brasileiro, pan-americano e sul-americano. Tenho 37 anos e luto com garotos de 22 anos. Hoje eu tenho um projeto social na favela em que nasci e fui ameaça pra comunidade. Hoje eu sou funcionário público, nomeado pela SEAP (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária), pra multiplicar isso que aconteceu comigo. Eu volto no presídio trabalhando na ressocialização e dando oportunidade pra aqueles homens serem inseridos no mercado da luta. A minha história vai virar um filme de longa metragem, do cineasta Paulo Tiago, que já pegou o distribuidor e agora tá fechando o elenco. Eu não posso falar quem é o ator, só posso falar que é um ator global. Essa história, que vai pro cinema no mundo todo, eu tenho certeza que é pra Deus mostrar que é possível, quando o homem quer. Mas pra tudo isso eu tive que lutar. Hoje a minha maior luta é salvar os meu amigos que ainda tão no crime, salvar essas crianças através dos projetos, pra que eles não sejam atraídos pelo crime como eu fui há vinte anos. Eu mato um leão por dia pra continuar nessa luta. Do projeto que eu tenho 100 crianças, se eu formar um cidadão, pra mim é muito. Hoje o que vale mais pra mim do que dinheiro é o abraço da comunidade na rua. Eu sou visto como um exemplo, a pessoa que tá toda hora em reportagem de televisão. E eu não posso deixar de ressaltar a função muito importante da minha família na minha recuperação. Minha mulher está há 23 anos comigo e me acompanhou dentro de prisão por dez anos, junto com a minha filha. Elas não me abandonaram em momento nenhum. Se elas me abandonassem, eu tenho certeza que eu me enforcaria lá dentro, ou que você não ia tá pegando essa entrevista porque eu ainda ia tá no crime ou dentro da cadeia. Eu vi três homens se enforcarem no sistema penitenciário porque mulher largou, porque a família abandonou e ninguém acreditou mais nele.

Como é dar aula pra presidiários, você consegue manter a disciplina nas aulas?

Os presidiários são muito disciplinados, porque lá eu dou aula num regime de ditadura. Ali eu sou o líder, o que eu falar tá falado. Se faltar três dias, tá cortado. A secretaria exige muitos requisitos. Eles têm que ter bom comportamento e tá estudando dentro da unidade. Eu ensino pra eles como eu aprendi: a filosofia do esporte é o domínio próprio. Quando eu consigo dominar minha raiva eu vou ser uma excelente pessoa na vida e um excelente lutador. Quando você começa a dominar seus medos, seus demônios, suas ansiedades, você tá preparado pra qualquer coisa. Nessa vida a gente tem medo de tudo. Às vezes você sai de casa e não sabe se vai voltar. Na televisão só se vê morte. Mas se você ficar com medo vai pegar uma depressão profunda ou uma síndrome do pânico. As artes marciais ensinam esse enfrentamento pra vida e ensinam a pessoa a cair e levantar. Porque quando você toma um golpe forte você cai, mas você sabe que tem que levantar pra continuar.

Tem muita gente que acha que esse tipo de luta incentiva a violência. O que você acha disso?

Nós estamos quebrando esses paradigmas. Há muito mais índices de contusões sérias em atletas de outras modalidades do que nas artes marciais. No futebol acontecem lesões do cara ter que ficar dois anos sem jogar bola Eu vi numa matéria recente que foram mais de 100 atletas que tiveram morte súbita. Isso porque os clubes estão sendo negligentes nos exames médicos. O atleta de futebol faz anualmente estes exames, na luta fazemos de três em três meses. Eu acho que as artes marciais, o MMA, o vale tudo, o muay tai não são esportes violentos e sim agressivos, como a fórmula 1. Na fórmula 1, o cara tá a 300 por hora e numa curva pode se espatifar e perder a vida. Mas ele tá treinado pra aquilo. O lutador prepara o corpo, a mente e o espírito nos treinamentos físicos. Ele sabe que vai entrar ali com uma pessoa que pode tá tão preparada quanto ele pra aguentar as pancadas. Vãos ser dois profissionais que sabem que vão bater, que vão apanhar, e existem regras. Não vale golpe nas genitais, dedo no olho, puxão de cabelo, alguns tipos de cotoveladas. Se o atleta bater três vezes no chão o árbitro acaba a luta, pois é um sinal de que ele não aguenta mais. Então eu não acho violência porque são duas pessoas preparadas. Violência e covardia é o cara treinar artes marciais e sair na rua pra brigar com pessoas leigas, que não sabem lutar. Mas eu acho que a maior violência acontece no meio da sociedade, que é o trabalhador chegar em casa às 10 da noite e encontrar uma troca de tiros ou as pessoas precisarem de um atendimento médico e morrerem por omissão de socorro.

Você acha que a UPP vai chegar aqui na Vila Kennedy?

Eu acho que a zona oeste vai ter os últimos bairros pacificados. Eu vejo como uma estratégia do poder público. Todos os traficantes das áreas ocupadas pelas UPPs, Cantagalo, Mangueira, Morro do São João, estão se refugiando na zona oeste, principalmente na Vila Kennedy. A Vila Kennedy é um lugar onde vende muita droga e isso desperta a atenção de outras facções. Hoje estamos vivendo numa guerra urbana, não tem mais hora pra acontecer tiro e o policiamento é precário. Agora o porquê eu não sei, é o sistema. Eu acho que enquanto tá morrendo só moradores, o poder público não vai se manifestar. Eu não desejo mal a ninguém, mas tenho certeza que quando morrer um policial aqui dentro eles vão querer colocar uma unidade pacificadora. Será que vendo a comunidade sofrer já não basta? Tá nítido, todas as emissoras falam que a Vila Kennedy precisa. Mas eu acho que eles estão pensando muito nas Olimpíadas e na Copa do Mundo. Como aqui não tem nenhum estádio grande e não vai ter nada dos Jogos Olímpicos, estamos esquecidos. Mas todos nós, cidadãos civilizados e trabalhadores, pagamos pra ter uma segurança melhor.

Você tem algum ídolo nas artes marciais ou no esporte?

O Minotouro e o Minotauro, que entraram no complexo penitenciário sem preconceito nenhum e apostaram na minha recuperação. Hoje, aquela sementinha que eles plantaram na penitenciária Muniz Sodré deu frutos em dez penitenciárias. O projeto “Lutando pela vida” já tem sete egressos, ex-presidiários que estão vivendo das artes marciais. Eu lembro como se fosse hoje a gente batendo num saco de areia e pedra, revestidos por três calças jeans. Através do crédito que eles me deram, 500 homens estão tendo a oportunidade de serem salvos.  É por isso que eu tenho eles como ídolos na luta e de humanidade. Se você vir aqueles dois caras grandes, pesos pesados, vai achar que eles são monstros. Na verdade eles são amores de pessoas e são meus amigos. Eu acho que, se não fosse aquilo, a minha história poderia ser diferente.

Você acha que essa oportunidade dada na prisão mudou sua vida?

Eu recebi a oportunidade da minha vida dentro do sistema penitenciário. Onde eu pensei que tudo tava perdido, onde era o fim, realmente foi o começo. As pancadas que eu tomo no ringue, nenhuma delas são mais fortes que as pancadas que eu tomei da vida. Eu tomei muita pancada da vida e consegui me reerguer. Então não são as pancadas no ringue que vão fazer diferença. Ali é só um esporte, acaba, eu abraço o cara, ele me abraça. Eu quero me deixar como um exemplo de superação, Quando eu cheguei a dependência química, quando eu cheguei ao fundo do poço com 17 anos de prisão, quando falaram que eu era o pior dos homens, que eu era bandido e nunca ia deixar de ser, hoje eu mostro que tudo é possível.

Você passou muitas dificuldades dentro da Vila Kennedy, mas também deve ter tido momentos felizes. Qual é o lado bom de morar numa favela?

A minha mãe sempre falou: “Fábio, nós somos favelados, mas não é por isso que nós temos que ser porcos. Temos que ter higiene, temos que ser educados. Você tem que dá ‘bom dia’ quando entrar num lugar.” Essas coisas eu aprendi com a minha mãe dentro de uma favela, coisas que você vê algumas pessoas com curso superior não fazerem. Hoje eu chego no meio de juízes e desembargadores com um sorriso que eu aprendi dentro da favela. A humildade que eu tenho dentro de mim é porque eu sou favelado, sei as necessidades que todos passam e nem por isso a gente deixa de ser feliz. O favelado é um povo alegre porque as dificuldades ensinam que riqueza não tem nada a ver com felicidade. Se riqueza fosse sinônimo de felicidade eu não via noticiário na televisão que rico se suicidou, que deu tiro na cabeça, que toma remédio de tarja preta.

Você tem vontade de sair da Vila Kennedy pra morar em outro lugar?

Eu não tenho vontade de morar em outro lugar, mas acho que a vida pode me levar a isso. Mesmo assim eu nunca vou deixar de visitar a Vila Kennedy. As bases dos meus projetos sociais vão ser aqui. Nós temos exemplos de pessoas que saíram daqui, que ganharam dinheiro e fama e visitam a Vila Kennedy até hoje: o Toni Garrido e o André Ramiro, do Tropa de Elite. O Toni Garrido deu um depoimento dizendo que tirou a mãe dele daqui só porque a guerra tá demais. Se eu sair é pela falta de segurança. Imagina que a minha filha esteja brincando na rua e acontece uma bala perdida? Eu tendo condição, é claro, eu saio. Mas tudo que eu aprendi, como saber respeitar os outros, tratar o mendigo e o empresário igualmente, eu aprendi na favela. Eu não ia aprender isso se, de repente, eu nascesse numa família rica. Tem muitas famílias ricas que são exemplos de vida, que ajudam muita gente, mas eles não conhecem o valor da vida, nunca sofreram necessidade. A minha base é a Vila Kennedy, é a favela, eu jamais vou negar as minhas origens. Eu posso tá morando na Barra ou em Nova York, se alguém me entrevistar, eu vou dizer que essa minha humildade e o meu bom humor eu aprendi dentro de uma favela.

Disponível em: < http://acervo2.vivafavela.com.br/materias/quando-luta-domou-o-le%C3%A3o >
Acesso em: 05/11/2014

Juízo – o maior exige do menor

Posted in Cidadania, Cinema, Educação, Intervenção Social, Violência Urbana with tags , , , , , , , , , , , , , , , , on junho 19, 2009 by projetomuquecababys

By Maria Augusta Ramos

(…) meninos e meninas que vemos de frente para a câmera pertencem ao mesmo fora do quadro das meninas e meninos que vemos de frente para juízes e promotores. Os jovens intérpretes vivem tão confinados, tão à margem da sociedade quanto os que de fato são julgados nas audiências. Isto é o que revelam enquanto encenam, reconstituem, contam (esta, talvez a palavra exata: contam) o que outros meninos e meninas iguais a eles viveram na sala de audiência ou nas celas do instituto. Contam para uma câmera discreta e firme, toda ouvidos, olhos nos olhos deles, como os juízes recomendam que eles tenham juízo (“Você não tem direito de roubar bicicleta de ninguém. Nem bicicleta, nem nada de ninguém”), como os inspetores dizem que eles devem andar na linha (“Baixa a cabeça! Todo mundo. Em linha. Acabou de comer, baixa a cabeça!”).

Três questões foram propostas aos juízes Sergio Mazina, Cristiana Cordeiro e Luciana Fiala:

Juiz Sergio Mazina

Entre as causas que conduzem crianças e adolescentes à criminalidade, quais são as mais fortes, do seu ponto de vista?
Há um complexo de fatores que são importantes para a produção da violência. De um lado, temos a exclusão de parcelas cada vez maiores da população dos processos econômicos, sociais e culturais. Isso acarreta em condições de vida excessivamente degradantes, o que implica no aumento da violência. Do outro lado, temos um Poder Público historicamente orientado para atender interesses particulares e privados. É claro que, nesse sentido, a desorganização da polícia, da justiça e do Ministério Público é um fator altamente criminógeno. No que toca a delinqüência infanto-juvenil, acrescem-se outros fatores específicos, como a degradação das redes de educação pública no Brasil e a inexistência de uma rede de serviços públicos de apoio, acompanhamento e orientação da população mais vulnerável (tais como creches, serviços de assistência social e de saúde etc.). Por outro lado, e atravessando todos os segmentos da sociedade, temos uma profunda crise: é como se os adultos não tivessem autoridade sequer sobre si próprios e, por conseqüência, também já não sabem exercê-la sobre seus filhos. Mas o que a infância e a adolescência mais precisam é de adultos diferentes, que estejam abertos a um olhar que as entenda como indivíduos diferenciados, vivendo uma situação de vida muito peculiar. Eles ainda estão em formação e precisam de muita atenção, muito respeito e muito amor, que é o que nós adultos estamos negando cada vez mais.

Como definiria sua experiência de enfrentamento diário com as questões do menor delinqüente?
Eu diria que o menor dos problemas é o adolescente infrator. Essa talvez tenha sido a primeira grande lição que tive como operador deste sistema de justiça. Os adolescentes são indivíduos diferenciados dos adultos que cometem crimes – e para os quais eu voltava, até então, minha formação profissional. Em segundo lugar, a constatação da necessidade – e da dificuldade – de conversar com os responsáveis pelos adolescentes. Na sua gigantesca maioria, são pessoas acostumadas a um Estado que se define por apenas três verbos: cobrar, expulsar e prender. O grande desafio é o de realizar um Estado que acrescente um quarto exercício, que realmente converse com essas pessoas. Curioso, no entanto, é que nossa formação profissional não está minimamente voltada a esse exercício da conversa, dessa troca. Finalmente, há de se reservar o maior de todos os desafios que consiste em lidar com um sistema de justiça que, à revelia do próprio direito existente hoje no Brasil, é ainda eminentemente punitivo, não tolerando uma percepção mais ampla daquela realidade e sempre buscando uma simplificação grosseira e massificada de suas rotinas. As grandes resistências às mudanças são dos próprios operadores do sistema de justiça, que não toleram abrir mão de papéis seletivos e punitivos que há muito invocaram para si.

Como lhe parece que Juízo retrata a questão e participa do esforço para reduzir a dimensão do problema?
É aquela idéia de iluminar alguma coisa que estava escurecida. Esse é o principal trabalho realizado pelo ilme e o centro de sua importância documental. O filme Juízo se debruça sobre o imenso despreparo que atinge todos os operadores desse sistema de justiça, desde administradores das instituições privativas de liberdade – que não percebem o absurdo de disciplinar crianças como se fossem adultos – até, e principalmente, juízes, promotores de justiça e advogados. Desde os trajes grotescos que vestem até a linguagem estridente que empregam, tudo é feito para não conversar, para não dialogar, para não entender e para não ser entendido. Estamos diante de uma certa nobreza descoroada. Ninguém percebe a dimensão mais ampla do serviço público. Se essa é a justiça, então a vida corre à distância dela e sensibilizar-nos para isso foi certamente a maior maestria do filme.

O Juiz Sergio Mazina é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Juíza Cristiana Cordeiro

Entre as causas que conduzem crianças e adolescentes à criminalidade, quais são as mais fortes, do seu ponto de vista?
A falta de perspectiva de futuro; a estrutura familiar desorganizada, sem imposição clara de limites, em geral com ausência da figura paterna, que representa a lei; a sociedade de consumo, onde bens materiais são supervalorizados em detrimento de outros bens, como ética, moral, amizade e respeito; a ausência ou precariedade dos serviços essenciais oferecidos pelo Estado, em especial saúde e educação de qualidade; o tempo ocioso, sem possibilidade, de preenchimento com atividades de lazer ou ensino; e a facilidade de acesso a armas e drogas (lícitas e ilícitas).

Como definiria sua experiência de enfrentamento diário com as questões do menor delinqüente?
Quando se trabalha com um número reduzido de crianças e adolescentes em conflito com a lei, é possível estabelecer um vínculo com eles e implicá-los no processo de ressocialização, traçando um plano de trabalho individualizado. Tive experiências bem sucedidas com diversos adolescentes em Nilópolis por ter encontrado lá estes ingredientes. Percebo que nos grandes centros urbanos tal sucesso é maisraro, especialmente quando há uma grande quantidade de adolescentes atendidos por uma mesma Vara. Um bom exemplo disso é a quantidade diária de audiências de apresentação (primeira audiência – e, às vezes, única) realizadas. Se o Juiz dispõe de uma hora ou de 15 minutos para cada audiência, obviamente na segunda hipótese fará uma audiência de pior qualidade.

Como lhe parece que Juízo retrata a questão e participa do esforço para reduzir a dimensão do problema?
Enquanto Juíza, não tenho vergonha de dizer que o filme de Maria Augusta Ramos me prendeu à cadeira e me socou o estômago. O filme revela o quanto os que lidam diariamente com a questão do adolescente infrator estão despreparados para fazê-lo e o quanto sequer se dão conta disso. Como se o conteúdo do filme não bastasse, Maria Augusta ainda nos deixa o lembrete emblemático do título. Espero que os que têm o poder de promover mudanças recobrem o JUÍZO em breve.

A Juíza Cristiana Cordeiro é titular da II Vara Regional da Infância, da Juventude e do Idoso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

 Juíza Luciana Fiala

Entre as causas que conduzem crianças e adolescentes à criminalidade, quais são as mais fortes, do seu ponto de vista?
Não há dúvidas de que o contexto sócio-econômico em que os adolescentes vivem influi na ida para a criminalidade. No entanto, o que mais interfere é a formação da criança, a educação recebida dos pais, o ambiente familiar e o estímulo aliado à cobrança e à fiscalização do empenho nos estudos e do cumprimento de regras de conduta e convívio social. Não é porque é pobre que tem que ser bandido. Mas tudo depende do que é visto e aprendido em casa, de noções de dignidade e caráter e a necessidade de estar sempre em busca de um objetivo. Infelizmente, estes ensinamentos cada vez mais escassos são pontos decisivos na formação do caráter. Nos adolescentes infratores, ocorre um desvio na personalidade que, depois de certa idade, é difícil de ser contornado.

Como definiria sua experiência de enfrentamento diário com as questões do menor delinqüente?
Bastante desgastante. Principalmente por saber que a chance de recuperação daqueles jovens era remota, já que exigiria uma ação conjunta dos poderes executivo, legislativo e judiciário, além de suporte médico e psicológico, e reformas e melhorias das instituições nas quais cumprem as medidas sócioeducativas. Ou seja, aquilo que chamam de “vontade política”. Sem isso, as medidas aplicadas caem no vazio. Mas eu, como Juíza, não tenho autorização legal para não aplicar a medida necessária. Para mim, era uma sensação de impotência que eu não podia deixar prevalecer. Então, procurava fazer o que estava a meu alcance para alertar, procurava de todas as formas chamar à consciência os adolescentes para o que estavam fazendo e exigia que percebessem as implicações de seus atos.

Como lhe parece que Juízo retrata a questão e participa do esforço para reduzir a dimensão do problema?
O filme trata de um tema árido com muita leveza. Não vi ninguém sair com uma sensação ruim. O mais interessante é que retrata a vida como ela é nos dias atuais. Nada ali deixou de acontecer, foi ensaiado ou treinado. A meu ver, o seu grande mérito é “fazer do limão uma limonada”. As adversidades existem na vida e devemos ultrapassá-las, tendo esperança de que muitos venham a pensar assim, o que incutirá na mentalidade dos jovens noções de dignidade, respeito e perseverança. O filme chama atenção para a situação real dos adolescentes infratores e convida à reflexão toda a sociedade. E isso é um excelente começo.

A Juíza Luciana Fiala é Juíza de direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e no momento atua na Comarca de Paracambi. Algumas audiências julgadas por ela estão incluídas em Juízo.

http://www.juizoofilme.com.br/php/imprensa_release.php?lang=pt